Deliciosa as tardes
naquela casa dos fundos, naquele bairro longe, daquela cidade
vizinha. Eles não eram perfeitos, e tinham lá seus problemas... mas
de alguma forma, conseguiram construir uma casa e uma vida muito
bonita juntos. Garantindo a individualidade de cada um, reconheciam
que suas vidas estavam misturadas, as contas, as roupas - ele com a
camiseta dela e ela com a cueca dele, a rotina que um ajudava o outro
a lembrar e a comida... ah! A comida.
Almoçávamos e
conversávamos, às vezes também simplesmente ficávamos em
silêncio. Eles preparando e às vezes lembrando de alguma coisa que
precisava ajustar na casa e fazendo uma breve conversa agradável
sobre isso. Eu ficava assistindo, como quem assiste a uma série
preferida na TV. O jeito que ele pegava a cebola na geladeira de um
jeito que pudesse de alguma forma passar pelo corpo dela e mostrar
que a deseja. O jeito que ela o abraçava por trás enquanto ele
preparava o molho, para ver como estão indo as coisas “do lado
dele”. Às vezes consultavam a receita na internet. Cada vez que ia
visitá-los era um prato novo.
Fazia calor. Fazia
calor naquela cidade quente, e fazia calor porque aquela casa, com
aquele amor torto – e torto porque não era convencional, mas era
inquestionavelmente sincero – meu coração se aquecia e eu tinha
esperança de um dia talvez viver aquilo com alguém. Muitas vezes eu
não gostava do prato que eles preparavam – era muito fresca com
comida. Mas quando estava pronto eu resolvia que iria comer um pouco
por educação, e quando comia era tão gostoso. Eles faziam eu
gostar de coisas que eu normalmente acharia desprezível. Passas.
Salada com manga. Mandioquinha. A vida com alguém.
Eu comia aquelas
refeições com tanto gosto, como se quisesse engolir a comida toda,
a casa deles, a vida deles. Eu não queria trocar de lugar com
nenhuma das partes. Eles eram essencial para aquilo ser do jeito que
era. Poderia trocar a minha vida de personagem para me tornar uma
espectadora da vida deles. Ser platéia para o resto da vida. Era
porque ali não tinha idealizações e imperfeições eram
permitidas, era porque não havia expectativas inatingíveis, era
porque ali havia um espaço de resistência frente ao mundo selvagem
lá fora que aquele casal parecia tão perfeito. O amor, puro.
Eu estranho quem não é cafona, pelo menos um pouco, quando está gostando de alguém. Talvez depois de tantas desilusões e tombos e frustrações, a tendência é nos privar da exposição. De fato às vezes amadurecemos e deixamos de nos apaixonar a cada esquina. Por mais que seja divertido nos encantar ao primeiro "oi" agradável que recebemos, um pouco de seleção é até saudável e nos permite uma certa estabilidade em nossa sanidade.
O problema é que às vezes nos poupamos porque endurecemos e não nos permitimos também viver o ridículo. Ou pior, nos defendemos como se o coração fosse enfraquecendo e por isso precisasse de mais zelo. Esses não são os únicos problemas. E quando há encantamento, apaixonamento, tornamos adeptos ao terrível "relacionamento sério". Fechamos o expediente da sedução e dizemos que é hora de "aquietar" e "sossegar", pois agora estamos com quem amamos e a farra acabou.
Eu acho que é preciso lutar para que não deixemos de viver o lado ridículo do amor. A vida já é pesada demais com suas 8h de trabalho (às vezes hora extra), mais as roupas pra lavar e casa pra limpar e comida pra fazer e cobranças por todos os lados e as contas e tudo. E como militante defendo que lutemos para combater essa vida caótica e opressora que grande parte das pessoas enfrentam (os tais 99%). Mas também defendo cantar alto uma canção do Roberto Carlos ou mesmo do Sidney Magal enquanto toma banho sabendo que a noite terá uma boa noite de sexo com aquela pessoa que está apaixonada ou encantadinha. Ou que no meio da rotina louca encontre um tempo para mandar uma mensagem no celular ou mesmo escrever uma ridícula carta de amor.
Eu sei, a vida é dura, as pessoas são brutas e é cada vez mais difícil encontrar alguém que nos entenda e que seja uma boa companhia e que ao mesmo tempo nos atraia - e pior, que seja recíproco! Mas não deixemos de escrever ridículas cartas de amor pois arrisco dizer - sem medo de parecer ridícula - que essas são uma das coisas que fazem a vida ser viva.
É sempre do mesmo jeito.
Alguém conta um caso horrível que leu e o clima fica pesado. Outra comenta conhecer uma pessoa que passou por algo parecido, e detalha uma história horrível. Então alguém diz que também conhece e conta outra horrível história. E então uma quarta pessoa que estava calada até então solta, como algo entalado há muito tempo:
- Eu já passei por algo assim.
Por um instante todas se calam. Chegou a hora dela não se calar, e por vez contar algo muito tempo guardado. É a primeira denuncia, ainda que pra quatro pessoas. As palavras saem de sua boca doídas, e as demais recebem as palavras doídas com muita dor.
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Então, não é rara as vezes que todas começam a compartilhar suas próprias histórias de dor, até então privadas. Pouco a pouco o corpo relembra aquele toque não desejado que veio mesmo assim. De um desconhecido ou de um namorado da adolescência. Ou de um familiar. Ou de um cara da faculdade.
As estatísticas não escondem. A OMS estima que cerca de mais um terço das mulheres do mundo já sofreram alguma agressão física. Isso significa que uma em cada três mulheres passam, em algum momento da sua vida - e às vezes é um periodo longo - por alguma violência, seja estuprada ou espancada.
A cada 12 segundos uma mulher é estuprada no Brasil. E quando falamos disso pensamos na imagem do beco escuro e a mulher de saias curtas ("provocando") andando pela madrugada (horário de mocinha ficar em casa!!!). Isso acontece, e independente do tamanho da saia e independente do horário. Mas o estupro está presente no dia a dia mais banal. Na volta de uma festa com um amigo bêbado, no dia que o namorado ou marido ou parceiro força o sexo mesmo sem a mulher estar interessada. E isso agrava com as mulheres pobres que às vezes dependem financeiramente do agressor, que possuem uma dificuldade material de livrar-se de uma situação de violência.
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Infelizmente, nenhuma mulher está blindada de ser violentada. É claro que vamos criando algumas medidas para evitar, mas acho importante sempre escrever e falar isso porque
(1) não somos nós que devemos adaptar a nossa vida para possíveis não estupros
é lógico que sabendo que estamos em um mundo machista e que uma a cada três mulheres sofre violência, precisamos estar atentas. há mulheres que recorrem para defesa pessoal, ou que andam com spray de pimenta na bolsa. mas mais importante que isso, precisamos lutar para que estejamos cada vez mais seguras e que o Estado nos dê cada vez mais assistência quando algo ocorre. O problema não é da estuprada, é do estuprador. Não somos nós que devemos temer. E hoje quem teme somos nós porque o mundo está ao lado do estuprador. São os programas e propagandas de TV que mostram a mulher como objeto sexual e muitas vezes naturalizam o estupro ou até fazem piadas. Está na dificuldade de ter acesso a informação do que fazer quando isso acontece. É a suspeita que existe na delegacia, no hospital, na familia, entre os amigos, que de forma explícita ou implícita acreditam que de alguma forma, ela permitiu que isso acontecesse. E isso leva ao outro "porquê" sempre ressaltar que não estamos livres de passarmos pela situação de violência.
(2) muitas vezes não falamos porque temos vergonha e a vergonha existe porque, muitas vezes, pelo motivo acima, achamos que a culpa é nossa. E isso não é só com a mulher que não tem informação. Isso acontece com mulheres que estão na faculdade, acontecem com feministas que são ativistas e debatem isso há anos. É diferente quando acontece conosco. Não estamos habituadas a enfrentar e denunciar o estupro. E denunciar já é um desafio. A mídia não nos deixa denunciar e está estampado nas manchetes de jornal quando aparece que alguma mulher "disse que foi estuprada". Disse que. A mídia coloca a pulga atrás da orelha - será que ela não deu motivo? E essa pergunta ecoa em cada uma das mulheres que passam por isso. Como mais uma mulher que já passou por isso, posso dizer que falar do assunto com mais alguém dá medo. Medo de ouvir um questionamento. É comum não contar para o namorado ou para o pai pelo medo de machucá-los (os "homens protetores que falharam") ou pelo medo de se decepcionar com a reação (quando esses ao invés de ficar ao lado, insinuam que você foi culpada). É preciso vencer esse medo e falar. Não há saia longa, submissão, reclusão ou silêncio que nos protejam da violência. Há mulheresque vivem para seus maridos,dando comida e roupa lavada e ainda assim são espancadas e forçadas a fazer sexo. Pelo contrário: o que irá nos salvar da violência é justamente a gente fazer muito barulho. Vivemos uma sociedade doente - por séculos e décadas de opressão - queprecisa ser transformada.
Não deixemos que essas experiências dolorosas fiquem guardadas aos muros dos becos, ou às paredes (às vezes de nossas próprias casas). Quebremos os muros e as paredes com nossa denúncia. Precisamos falar disso cada vez mais. Fico sempre impressionada, pois não tem uma vez que alguém me apresenta um texto novo de relato de experiência de alguma violência, que não venha acompanhado de comentários tocantes - no blog, entre a pessoa que divulgou etc. E na hora dói escrever, falar, ler, ouvir, mas também saímos sempre fortalecidas. Isso não pode ficar guardado em nossas gargantas, sobre nossas costas. Joana, Samara, Dalila, Clarice, Felícia, Célia, Regina, Sonia, Gabriela, Liz, Marcela, Zélia, Claudia, Thalita, Veronica, Francisca, Adélia, Mara e todas as mulheres, não se calem!