sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Das curvas da estrada de Santos que ninguém vê - ou faz que não vê.

Uma vez, há muito tempo atrás, havia uma mulher na Zona Noroeste de Santos. Para quem não conhece, a Zona Noroeste é uma daquelas regiões que os políticos adoram nas épocas de eleição, que o tráfico é o Estado, e que as mulheres são vistas como mulheres que fazem filho e almoço pros filhos feitos, e nada mais (de vez em quando uma rendinha há mais como um bico de manicure ou de costureira). Não em toda a Zona Noroeste, mas em grande parte, há palafitas em cima do mangue. Elas podem ser vistas quando ainda estamos na estrada, entre Cubatão, São Vicente e Santos.

É lá que tem a maior favela de Santos. E essa mulher que compõe essa história é de uma região chamada Dique Vila Gilda. Bom, existem várias mulheres ali, a considerar que é uma região com mais de 20 mil habitantes. Mas a história dessa mulher é que me acompanha até os dias de hoje.

Segundo contam as histórias, a moça passou grande parte da sua vida lutando por melhorias no teu bairro, e teu grande feito foi o primeiro telefone público instalado na região. Um dia, cansada da miséria toda bebeu a água do canal - uma água extremamente contaminada - e morreu. Ela tinha, para além de oito filhos - um de cada pai - o meu nome. Ou: eu tenho o mesmo nome que ela tinha. Isabel.

Ouvi essa história de Isabel há um pouco mais de cinco anos atrás. Na época eu chorei. Talvez o fato de ter o mesmo nome que eu tenha criado uma maior empatia mas sei que não foi só isso. Eu chorei porque era uma história que contava da pobreza, da luta, e de uma mulher, que era uma anônima conhecida no bairro. Do momento que ouvi aquela história, sabia que jamais esqueceria - e faria de tudo para não esquecer. 

Chorei porque o Dique da Vila Gilda não foi o lugar em que eu encontrei mau cheiro e lixo e miséria, coisas que são muito observadas e citadas quando a Universidade vai "visitar". Cada encontro com uma pessoa lá era como se fosse encontro de vidas. As pessoas com quem conversei lá ficaram guardadas na memória, como pessoas dos filmes de Eduardo Coutinho que o mero ato de contar as coisas mais simples e banais da sua história fazia com que virassem personagens das mais incríveis. 

Essa fase de idas e vindas no Dique Vila Gilda talvez esteja tão viva agora porque ultimamente tenho tido encontros assim, com mulheres daqui do Nordeste, que chamam para um cafézinho e desatam a falar de suas vidas. São pessoas que vamos cruzando na vida e que não são do trabalho ou da família ou do ciclo de amigos. São pessoas que estão levando a sua respectiva vida e num dado momento cruza com a nossa e em meio a um café trocamos um pouco de prosa, que nos deixa uma marca que levamos para sempre conosco. 

Sei lá porque essas coisas me comovem, tenho um coração mole que só, mas essa história que escrevo agora não diz respeito a mim ou ao que me comove ou ao meu coração mole ou ao encontro com as mulheres do Nordeste e menos ainda aos filmes de Eduardo Countinho. Essa é a história de Isabel, aquela que não sou eu. 

O que tanto Isabel queria com um telefone público? Fugiria ela da sua triste realidade comunicando-se com outros lugares através de um telefone? Esperava alguma chamada? Seria só mais uma ação dentre tantas outras que fazia, e essa foi a única ação que é lembrada, talvez só por mim e por quem me contou a história?   

Hoje já há mais telefones públicos na região, embora as pessoas não liguem mais tanto pra isso hoje em dia, com tantos celulares - hoje é mais fácil comprar um celular moderno que conseguir um remédio no postinho. É bem possível até que o telefone público conquistado pela Isabel já esteja desativado ou quebrado ou algo assim. 

Maria, Zefinha, Aparecida, Néia. Mulheres que enterram de vez a ideia de "sexo frágil". E Isabel, que não tinha sobrenome e não está em nenhum livro - se procurar na internet, acho que é possível encontrar algo sobre ela, na época eu fui procurar e achei. Isabel tem a história do Dique cravado em suas entranhas - um lugar carregado por tanta miséria, mas também por uma vida pulsante que tenta escoar algo melhor que apenas lodo dos canais. Que a luta do povo do Dique da Vila Gilda arraste todo o sangue e lágrima e lodo que habita hoje nos canais, e deixem os sonhos de Isabel nadando em águas mais limpas, somando-se a outros sonhos de outras e outros moradores.

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