quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Corpo Ausentes

"Teu ponteiro enloqueceu, enloquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si, 
o ato que não ousamos nem sabemos ousar 
porque depois dele não há nada?" 
Carlos Drummond de Andrade, A um ausente

- Eu gosto mesmo é de seguir o coração - diz a atriz bonita na TV que sempre acompanha os almoços em restaurantes, opinando sobre a forma que levava a vida como se a todos interessassem - e o pior era saber que há muitos interessava.
O "corpo presente" repete, com um sorriso de quem quer fazer graça e ao mesmo tempo constrangido com a falta de assunto. Era mais uma tentativa de recomeçar uma conversa, tão difícil de ser engatada naquela tarde:
- Está vendo? Tem que seguir o coração.
- Seguir o coração só dá merda - ela diz, declarando a falta de assunto como algo proposital, fruto da falta de paciência, e enfia o garfo com comida na boca. O tempo lhe fez endurecer ao mesmo tempo que lhe tornou mais simpática. Vivia com essa dupla-personalidade e os outros a sua volta aprendiam a conviver. Sabia que dela viriam as respostas mais ásperas mas também muito ternas, sendo todas elas respostas verdadeiras.

O "corpo presente" - que não é dela mas é o que está presente - sorri, acostumado com as cortadas. O "corpo presente" insiste e fala sobre suas ideias mais mirabolantes e vez ou outras solta tímidas declarações como quando ela vai prender o cabelo sorrindo e ele desabafa: "você é bonita". Os elogios até hoje ela não aprendeu a ouvir. É comum responder com algum comentário qualquer, mudando de assunto, fingindo que não ouviu, pra evitar ter que responder. Os planos mirabolantes e grandes reflexões filosóficas que não levam a lugar algum ela aprendeu a não ouvir, e se permite nessas horas se soltar para encontrar seus pensamentos no "corpo ausente", e o pensamento vai longe no tempo, no espaço, até que o "corpo presente" lhe chama de volta perguntando a sua opinião. Quando estão os dois no carro, é no "corpo ausente" que ela pensa, enquanto olha a vida lá fora. É no carro que ela entende muito das coisas, ou reflete sobre o incompreensível. Os caminhos sempre foram atraentes, pois permitem fazer planos que nem sempre são possíveis quando se chega, seja aonde for. A música ao fundo ajuda também a cabeça a pensar melhor, fluir melhor as ideias.

O "corpo ausente dela" tem seu "corpo presente dele" já, e não era ela, era outra. Vez ou outra ela lembra e grande parte do tempo tenta se enganar que é detalhe. Acontece que vez ou outra ela é o "corpo ausente" do "corpo ausente" (ele), mas são apenas - e aquele "apenas" era uma pequena palavra que mudava tudo - fantasias dos "corpos ausentes" (os dois). Então era hora da fantasia acabar, acabar com o feitiço que gerou o encantamento fudido - esse foi o diagnóstico acordado entre ambos. Sabia que aquela hora chegaria, e até vê que durou certo tempo. Sabia também que essa escolha dizia respeito a ele, "corpo ausente dela". Cabia a ele decidir até onde levaria esse devir, esse será que gritava na orelha de ambos. Cabia a ele transformar a reticências em ponto final, pois ele era quem tinha o "corpo presente dele" já, e ela não poderia ser "corpo ausente" pra sempre, pois não existe lugar para os "corpos ausentes" nas vidas alheias dos possuidores de "corpos presentes". "Corpo ausente" é vaga temporária, e logo passa o prazo e validade.

Ela olha na janela do carro e da janela do carro olha muita coisa da vida lá fora. Também entende muita coisa, e reflete sobre o incompreensível. Não sente medo, nem tristeza, nem raiva. E quando não sentia nem medo, nem tristeza, nem raiva, sempre pensava: então amadurecer é isso? Aprender a não sentir? Aquela verdade era insuportável a ela. A ideia de endurecer a ponto de não sentir mais medo, nem tristeza, nem raiva, era como morrer e continuar viva, e essa era o tipo de morte que mais temia. Então acompanhava pela janela ao som de uma música clichê enquanto se dava conta que o "corpo ausente" se preparava para ir embora de sua não-presença-sempre-presente-na-vida-dela, e pensa que não sente medo, tristeza ou raiva porque o "corpo ausente" que vai, na verdade nunca veio. 

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