segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Não se cale!

É sempre do mesmo jeito.
Alguém conta um caso horrível que leu e o clima fica pesado. Outra comenta conhecer uma pessoa que passou por algo parecido, e detalha uma história horrível. Então alguém diz que também conhece e conta outra horrível história. E então uma quarta pessoa que estava calada até então solta, como algo entalado há muito tempo:

- Eu já passei por algo assim.

Por um instante todas se calam. Chegou a hora dela não se calar, e por vez contar algo muito tempo guardado. É a primeira denuncia, ainda que pra quatro pessoas. As palavras saem de sua boca doídas, e as demais recebem as palavras doídas com muita dor.


Então, não é rara as vezes que todas começam a compartilhar suas próprias histórias de dor, até então privadas. Pouco a pouco o corpo relembra aquele toque não desejado que veio mesmo assim. De um desconhecido ou de um namorado da adolescência. Ou de um familiar. Ou de um cara da faculdade.

As estatísticas não escondem. A OMS estima que cerca de mais um terço das mulheres do mundo já sofreram alguma agressão física. Isso significa que uma em cada três mulheres passam, em algum momento da sua vida - e às vezes é um periodo longo - por alguma violência, seja estuprada ou espancada.

A cada 12 segundos uma mulher é estuprada no Brasil. E quando falamos disso pensamos na imagem do beco escuro e a mulher de saias curtas ("provocando") andando pela madrugada (horário de mocinha ficar em casa!!!). Isso acontece, e independente do tamanho da saia e independente do horário. Mas o estupro está presente no dia a dia mais banal. Na volta de uma festa com um amigo bêbado, no dia que o namorado ou marido ou parceiro força o sexo mesmo sem a mulher estar interessada. E isso agrava com as mulheres pobres que às vezes dependem financeiramente do agressor, que possuem uma dificuldade material de livrar-se de uma situação de violência.

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Infelizmente, nenhuma mulher está blindada de ser violentada. É claro que vamos criando algumas medidas para evitar, mas acho importante sempre escrever e falar isso porque 

(1) não somos nós que devemos adaptar a nossa vida para possíveis não estupros
é lógico que sabendo que estamos em um mundo machista e que uma a cada três mulheres sofre violência, precisamos estar atentas. há mulheres que recorrem para defesa pessoal, ou que andam com spray de pimenta na bolsa. mas mais importante que isso, precisamos lutar para que estejamos cada vez mais seguras e que o Estado nos dê cada vez mais assistência quando algo ocorre. O problema não é da estuprada, é do estuprador. Não somos nós que devemos temer. E hoje quem teme somos nós porque o mundo está ao lado do estuprador. São os programas e propagandas de TV que mostram a mulher como objeto sexual e muitas vezes naturalizam o estupro ou até fazem piadas. Está na dificuldade de ter acesso a informação do que fazer quando isso acontece. É a suspeita que existe na delegacia, no hospital, na familia, entre os amigos, que de forma explícita ou implícita acreditam que de alguma forma, ela permitiu que isso acontecesse. E isso leva ao outro "porquê" sempre ressaltar que não estamos livres de passarmos pela situação de violência.

(2) muitas vezes não falamos porque temos vergonha e a vergonha existe porque, muitas vezes, pelo motivo acima, achamos que a culpa é nossa. E isso não é só com a mulher que não tem informação. Isso acontece com mulheres que estão na faculdade, acontecem com feministas que são ativistas e debatem isso há anos. É diferente quando acontece conosco. Não estamos habituadas a enfrentar e denunciar o estupro. E denunciar já é um desafio. A mídia não nos deixa denunciar e está estampado nas manchetes de jornal quando aparece que alguma mulher "disse que foi estuprada". Disse que. A mídia coloca a pulga atrás da orelha - será que ela não deu motivo? E essa pergunta ecoa em cada uma das mulheres que passam por isso. Como mais uma mulher que já passou por isso, posso dizer que falar do assunto com mais alguém dá medo. Medo de ouvir um questionamento. É comum não contar para o namorado ou para o pai pelo medo de machucá-los (os "homens protetores que falharam") ou pelo medo de se decepcionar com a reação (quando esses ao invés de ficar ao lado, insinuam que você foi culpada). É preciso vencer esse medo e falar.

Não há saia longa, submissão, reclusão ou silêncio que nos protejam da violência. Há mulheres que vivem para seus maridos, dando comida e roupa lavada e ainda assim são espancadas e forçadas a fazer sexo. Pelo contrário: o que irá nos salvar da violência é justamente a gente fazer muito barulho. Vivemos uma sociedade doente - por séculos e décadas de opressão - que precisa ser transformada. 

Não deixemos que essas experiências dolorosas fiquem guardadas aos muros dos becos, ou às paredes (às vezes de nossas próprias casas). Quebremos os muros e as paredes com nossa denúncia. Precisamos falar disso cada vez mais. Fico sempre impressionada, pois não tem uma vez que alguém me apresenta um texto novo de relato de experiência de alguma violência, que não venha acompanhado de comentários tocantes - no blog, entre a pessoa que divulgou etc. E na hora dói escrever, falar, ler, ouvir, mas também saímos sempre fortalecidas. Isso não pode ficar guardado em nossas gargantas, sobre nossas costas. Joana, Samara, Dalila, Clarice, Felícia, Célia, Regina, Sonia, Gabriela, Liz, Marcela, Zélia, Claudia, Thalita, Veronica, Francisca, Adélia, Mara e todas as mulheres, não se calem! 

Um comentário:

cazuza disse...

Ler seu texto na volta de um ENEP da ainda mais vontade de gritar. Gritar por cada mulher agredida, por cada cidadão que é morto nos braços do Estado, por toda sexualidade que é forçada a calar e por todos tantos cale-se.

Continue(mos) gritando!

 
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