domingo, 2 de dezembro de 2012

Quase Morte, Quase Vida

Ele estava feliz. Quase havia morrido aquele dia. Seus olhos passavam paz, uma serenidade surpreendente, sobretudo em um ônibus velho intermunicipal ao final do expediente. A experiência de quase morte talvez valha dois anos de aprendizado em vida. Percebemos aqueles que se distanciaram - seja por um motivo bobo, ou mero descuido e pensamos em retomar contato. Coisas que de repente somos tão apegados - como o carro que quase provocou a morte - parecem tão pequenas. Dinheiro. De que adiantava trabalhar tanto se não tinha tempo de viajar sequer uma vez para uma outra paisagem?

Sua serenidade transformou-se subitamente em angústia. Todos os dias, são tantas quase mortes e mortes efetivas. Vidas que se foram, e o que fica? Aquilo lhe causou tamanha angústia. Se tivesse ido embora aquele dia, para sempre, o que havia deixado pro mundo? Não se tratava de escrever um livro, plantar uma árvore ou ter um filho. Queria mais. Perguntamos constantemente o que fazer de nossas vidas, se compraremos um carro ou faremos uma viagem, se seremos médicos ou engenheiros, prostituta ou faxineira, com filho ou sem filho, Folha ou Estado... mas que porra de mundo é esse, afinal? Será um amontoado de vidas fragmentadas que montam a história de uma geração de toda uma espécie humana?

E a vida de um ser humano? Fragmentada em dias, momentos, pequenas alegrias para satisfazer o próprio umbigo? Ele era um bom amigo, bom filho, bom irmão, bom professor... sabia que, caso encontrasse alguém, seria um bom companheiro. Viver é isso? Ser alguém bom com as pessoas? Sentia que era tão bom que não fazia diferença nenhuma - era alguém que estava sempre ali, não fazia mal a ninguém, não incomodava. Viver é não incomodar ninguém? Também não dizia nada de brilhante para ser lembrado. Não havia inventado coisa alguma, não havia descoberto a cura para alguma coisa, não havia sequer conseguido terminar o Simpsons no mega drive (jamais havia se perdoado por isso). E mesmo que tivesse... vida seria isso? Pequenas ou grandes glórias acumuladas?

Aos poucos, tranquilizou-se de novo e então começou a se animar. Uma quase morte é sempre um renascer, a possibilidade de ver o mundo com olhos de quem por pouco quase não esteve mais nele. Sabia que teria que fazer algo. Enquanto isso, vinte e cinco pessoas olhavam o nada dentro daquele ônibus intermunicipal, ao final do expediente de uma sexta feira. Estavam todos cansados, e alguns ainda planejavam o seu fim de semana. Uma senhora lembrava que havia sobrado frango da noite anterior e foi tomada por uma pequena alegria. Alguns cochilavam... faziam aquele caminho há anos e o corpo já acostumara a acordar no ponto certo de descer. Ele olhava para cada uma daquelas vinte e cinco pessoas e pensava em chamar para algo. Dizer algo bonito sobre o mundo, sobre a vida, a humanidade. Propor um momento de reflexão coletiva. Seu coração batia forte, antecipando um momento único de sua vida, o momento que faria a diferença. Estava acelerado e em sua cabeça surgia um lindo discurso que sequer sabia ser capaz de fazer algo tão belo e profundo. Pela primeira vez sentia orgulho de si - afinal, estava prestes a fazer algo.

Sua boca foi abrindo para verbalizar o discurso, sua garganta já estava preparada, estava suando apesar do frio, suas mãos estavam contraídas, até que foi tomado por uma súbita vergonha. "Que bobagem! Isso não fará sentido algum para essas pessoas, e vão achar que sou louco". Tirou o jornal de sua pasta, ele estava meio perdido em meio a provas para corrigir. Começou a ler as manchetes, anunciando as mortes na periferia, uma receita de bolo, o Palmeiras indo de mal a pior. Pensou em ler seu horóscopo, para ver se os astros previam aquele dia de cão que tivera. Seu horóscopo falava sobre ser um dia de tomar decisões, coisas que todo horóscopo alerta para algum signo todo dia. Sentiu-se bobo por ter feito isso e ficou com vergonha novamente.

Já não sentia mais angústia ou ânimo, ou coisa alguma. Estava "normal", como gostava de estar. Nunca entendeu essas pessoas que se descontrolavam com ataques de riso ou de choro. Mantinha-se com sua cara serena, sua pasta próxima do corpo. Olhou para a janela e viu que desceria no próximo ponto. Deu o sinal e ficou na porta esperando. Ele quase havia morrido aquele dia. Feliz que isso não ocorreu, voltou para a sua quase-vida de sempre. Deitou em seu travesseiro calmo, satisfeito que já estava de novo no conforto de sua casa. Dormiu pensando que poderia ter suas oito horas de sono, e que a partir do dia seguinte teria mais cautela, para não passar por outras experiências de quase-morte.

Um comentário:

Regina Helena Oliveira disse...

Bel gostei bastante são lapsos de vida e morte que vamos enfrentando dia a dia mas acabou bem dormiu e recuperou-se e partiu para mais um dia de destino!!!thanks Regina Helena aquela amiga da querida Leo e da querida Marta conheces !!!! bjs

 
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