quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Somos todos loucos

Vi, sim. Vi, e me assustei com a verdade bruta
de um mundo cujo maior horror é que ele é tão
vivo que, para admitir que estou tão viva
quanto ele - e minha pior descoberta é que
estou tão viva quanto ele - terei que alçar
minha consciência de vida exterior a um ponto
de crime contra a minha vida pessoal.
Clarice Lispector

A loucura é um tema intrigante, a começar que não há fronteiras para identificar ou compreender, além de não ser claro o que é necessário ser feito, afinal, com a loucura. A compreensão e o que se faz da loucura é, talvez, uma das questões do campo da saúde em que a postura política mais se torna explícita. Os conservadores, sem rodeios, assumem: interna. Prende. É problema. É perigoso. E diz isso a todos aqueles cuja alma não é mais possível sugar, pois de alguma forma está apodrecida ou enfraquecida. É louco porque não produz e está dando trabalho. Maria Rita Kehl cita, certa vez, a fala de um militante do MST, que por sua vez cita uma expressão comum do campo: "Do boi, a gente aproveita tudo, até o berro". E aí ela comenta: "Do homem, o capitalismo aproveita de tudo, até o berro".

A indústria farmacêutica tem grande poder de influência em determinar os diagnósticos. Diz que é baixo ou alto demais, é agitado ou calmo demais, é gordo ou magro demais, é triste ou alegre demais. Os diagnósticos da psiquiatria tem grande influência em determinar o que se diz normal e o que não é. Normal é aquele que não incomoda? Incomoda a quem? Incomoda nossa "ordem"? Que "ordem"? Aquela que atira cotidianamente na juventude na periferia? A "ordem" que adoece e mata nos locais de trabalho mais que nas grandes guerras? A "ordem" que depende de tanta miséria de tantos para tanta riqueza de poucos?

Um diagnóstico de surto psicótico a um perseguido político.
Um diagnóstico de depressão para aquela que sofre assedio moral e sexual.
Um diagnóstico de síndrome do pânico para aquele que recebe ameaças de morte.

Para quem se lança ao desafio de entender a loucura ou qualquer espécie de sofrimento psíquico, sobretudo em uma situação próxima a alguém que passa por alguma espécie de crise, a sensação é de angústia: de quem é a responsabilidade, afinal? Ora, isso é claro. É uma forma de produção da vida que está calcada na produção de doença, e não de saúde. Nossa forma de garantir a nossa existência nos exige que seja extraído nosso tempo de vida e transformá-lo em mercadoria - mais-valia - pra poder ter produto e podermos comprar os produtos. Estamos tão acostumados e sóbrios e domesticados e alienados nessa lógica que não conseguimos pensar o que é produzir os meios de manutenção da vida humana produzindo vida, produzindo saúde. Assim, o que se faz quando o corpo ou a mente diz "basta"? Pra onde vai? Pra onde leva? Não há lugar. Sobretudo quando envolve violência, agressividade, ou qualquer característica incômoda presente nessa sociedade pseudo-asséptica de parede podre pintada de branco pra disfarçar e garantir a "ordem". Mas essa violência e agressividade são respostas a violências e agressividades muito mais intensas, sentidas por todos nós. Como engolimos todas elas, e seguimos nossa vida - sendo até felizes, eu não sei.

Vida que enlouquece. Se perguntam o que há com os loucos, pergunto o que há com aqueles que sustentam alguma sanidade nessa vida maluca, em que tudo é mercadoria. Em que pensar é algo perigoso - e dizer é mais ainda. Em que amar é cronometrado. Em que teu abrigo fica tão longe, e tão impossível, e tão improvável. 

E se somos todos loucos, então que nos prendam todos.
Não sem antes gritarmos, e não há dinheiro que compre o nosso berro.

2 comentários:

Isis disse...

\o/!
Muito bom, Bel!
Bjs!

May disse...

belo texto.

:)

 
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