domingo, 13 de julho de 2008

Varol Bermelho - Antonio Prata

Do bafômetro I
Está em vigor, desde o dia 20 de junho, a nova lei 11.705, que pune com cadeia quem for pego dirigindo com mais de 6 dg/L de álcool no sangue.
“Você pode ser preso por ter comido um bombom de licor!”. Eis o que bradam, pelas bombonieres da cidade, os indignados chocólatras. Eles, minha gente, que ajudaram a fazer de São Paulo, como você bem sabe, a “capital mundial da trufa com Frangélico”.
“Vai em cana por bochechar com Listerine!”. É o que gritam os neocons da higiene bucal, provavelmente receosos de que a lei vá disseminar por nosso país, já tão afogado em mazelas, as pragas do tártaro e da placa bacteriana.
Estou realmente assombrado e admirado que a minha turma do bar esteja se unindo em torno de duas causas tão nobres: bombons e cáries. Claro. Afinal, exigir o direito de dirigir bêbado ninguém tem coragem.

Do bafômetro II
“Um chopinho! Uma tacinha!”, sussurram os mais ousados, olhando para os lados, conferindo se não estão mesmo sendo ouvidos.
Tá certo, eu também acho que uma taça de vinho e um chope poderiam ser liberados. Se fizerem abaixo assinado para mudarem a lei, me mandem por e-mail, eu assino. Mas esse é um detalhe menor, diante da boa notícia de que, finalmente, beber e dirigir vai se tornar um crime de verdade, e que milhares de vidas serão poupadas – e milhares, aqui, não é força de expressão. São mais de trinta mil mortos por ano, no trânsito. Boa parte dos acidentes, causados por motoristas bêbados.
Acho estranho tanto fervor na defesa de um chopinho e uma tacinha. E na vidinha, não vai nada?

Da jaca
Antes de mais nada, preciso dizer: não comemoro a cruzada puritana que assola o globo. A tentativa de impor ao corpo os valores de eficiência e produtividade – as barrigas de tanquinho ISO 12000, propagandas de nosso superávit muscular e superegóico; o troféu pela dominação de nossas panças e nossos instintos.
Todo poder ao telecoteco, ao ziriguidum, à picanha, ao vinho, à cerveja e ao doce de leite argentino. Viva Dionísio, Zé Celso, o Saci Pererê e essa coisa toda. (Se não fosse o álcool, aliás, acho que seria virgem até hoje – no meio da adolescência, só um psicopata pode ter a frieza de ficar pelado, na frente de uma garota, em pleno domínio de suas faculdades mentais). Mas, como dizia Confúcio, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa: assim como quem vier explicar a origem da tabela de logarítimos no meio de um bloco de carnaval deve ser mandado para a Sibéria, não dá pra conduzir uma máquina de uma tonelada a cinquenta quilômetros por hora, depois de beber.
Porém, ah, porém...

Do bafômetro III
Sexta-feira, agora, um cara me dizia, furibundo, já no quarto uísque com red bull: “e se eu quiser tomar um chope saindo do trabalho? Vou preso!”. “E desde quando você toma um chope? Você enche a lata!”. “Eu sei, mas suponhamos que eu queira, é um absurdo não poder!”. Eu, que já estava na terceira long-neck (and rising...), enchi o peito de virtude e passei um sabão no sujeito. Disse que era egoísta da parte dele. Que se a suposta ruína do happy hour viesse a salvar cinco mil vidas, estava valendo. Fiquei até arrepiado com minhas próprias palavras. Depois peguei o carro e fui-me embora para casa. Veja bem: eu, quando como bombom recheado, bochecho com Listerine ou bebo cerveja, dirijo com muito cuidado. Como todo o Brasileiro, aliás.

Do bafômetro IV ou: da lei (I)
Nós, brasileiros, temos um individualismo natural. Não aquela papagaiada dos americanos, que enchem a boca para citar a primeira emenda e o direito do Ser Humano viver como quer e longe dos tentáculos do Estado. Nosso individualismo é menos triunfal, mais íntimo. Entendemos que a lei exista, afinal, o ser humano faz um monte de besteiras por aí. O ser humano precisa de leis. Mas eu? Veja bem: eu tenho “as manha”.
No sábado, enquanto bebíamos vinho, num jantar, um cara argumentava que a lei era “muito autoritária. Uma coisa de cima pra baixo, muito radical”. Aí me lembrei de uma mulher que, na época da campanha pelo desarmamento, me disse que votaria contra a proibição das armas porque, desde os anos 70, seguia um princípio: “é proibido proibir”. Não era uma velha hiponga, mas alta executiva (CEO, como dizem agora) de uma Multinacional (corporação?). Síntese curiosa entre libertários e liberais. Alguma coisa entre Caetano Veloso e Thomas Friedman.
Essas conversas me deram a impressão que, no Brasil, toda vez que se discute uma nova lei, não é somente o conteúdo da mesma que está em pauta, mas o próprio conceito de lei, Estado, contrato social. “Como assim?!”, dizemos. “Alguém quer me proibir de fazer uma coisa?!”. Mais ainda: “vale para mim e todo mundo?! Estão me igualando à patuléia?! Nananina! Qual é mesmo a emenda lá que os caras sempre citam no final do filme, amor?! Aquela lá que eles falam na hora do tribunal, antes de beijar a loira?! É isso aí! Isso aí que eu acho dessa lei nova!”.

Tolerância zero
Na minha primeira aula da disciplina Ética I, na faculdade de filosofia, o professor Renato Janine Ribeiro informou que seríamos avaliados por um trabalho, cujo limite era 4 mil caracteres. Levantei a mão e perguntei, já quase afirmando: “mas se passar um pouco de 4 mil não tem problema, né?”. Janine começou a rir. Limite é aquilo que não se pode transpor. É o fim da linha, certo?Não no Brasil! No Brasil tudo tem um chorinho. A dose não é a dose, nem no copo, nem no tempo, nem na lei.
A lei anterior, que permitia uma taça de vinho ou dois chopes, não era um retumbante NÃO ao álcool. Ela permitia um pouquinho. Então, preferíamos, em vez de nos apegarmos ao texto da lei (dois chopes ou uma taça de vinho) – não sei se por nossa grande capacidade de abstração ou se por preguiça – nos focar no princípio da lei: “pode beber, mas não muito”. Ou seja, pegávamos o limite de dois chopes, adicionávamos o chorinho que acreditávamos caber a cada um e de nós lá se iam 30 mil vidas, a cada ano.
Agora, não tem mais chorinho nem vela. Bebeu um chope, adeus carro. E tem outra coisa que assusta: a maneira como a bebedeira é aferida: por uma máquina! Não tem tapinha nas costas do bafômetro, nem dá pra chegar pro canudo de plástico e falar, “veja bem, medidor, será que não dá para dar um jeitinho?”.
Que país é esse, minha gente?!

Do bafômetro V ou: da lei (II)
Desde que eu me entendo por gente, a 11.507 é primeira lei que surge ameaçando levar todo mundo pra cadeia. Rico, pobre, peão, deputado, acrobata amador ou poeta neo-concretista: dirigiu e bebeu, o pau comeu. Claro, todas as outras leis também deveriam ser para todos. Mas não são. A 11.507, a julgar pelas fotos dos motoristas assoprando o bafômetro, nos jornais, é ampla, geral e irrestrita.
Uma associação de bares e restaurantes está ameaçando entrar com ação na justiça, para garantir o direito inalienável de seus clientes atropelarem pedestres e chocarem-se contra Kombis escolares na contra-mão. Maravilha. A Kopenhagen e a Johsons, quem sabe, também vão fazer a mesma coisa.
Enquanto isso não acontece, no entanto, sugiro outra alteração na 11.705, para que ela não seja assim tão contrária à nossa natureza, à nossa cultura: cadeia diferenciada, dependendo da bebida que tiver sido ingerida pelo motorista.

Da penalidade
Uísque doze anos - O doutor vai praquela casona bonita da PF, em Higienópolis, que já hospedou Lalau e Rocha Matos. (Vão precisar comprar mais algumas mansões decadentes pra caber todo o pessoal da Vila Olímpia e dos Jardins, mas tudo bem, pra essas coisas nunca falta $$$).

Chope em bar carioca - A galera vai pra cela especial nas delegacias de Perdizes, Pompéia e Pinheiros. (Vão precisar fazer mais celas especiais pra acomodar todo o pessoal da Vila Madalena, mas tudo bem, algumas ONGs vão pressionar e o governo vai acabar cedendo).

Serra Malte, Original e Boêmia de garrafa – Os amantes da tradição são mandados para Ilha Grande, a masmorra mais cool de nossa história, que abrigou até Graciliano Ramos. (O presídio precisa de uma reforma, mas o pessoal da cerveja de garrafa pode trabalhar nisso, com materiais recicláveis e energia solar).

Schincariol de garrafa ou pinga 51 - Mete o vagabundo no xilindró e acabou. (Vão precisar fazer mais xilindrós, porque os que existem hoje já estão superlotados, mas isso pode esperar, ninguém que a gente conhece vai pra lá, mesmo).

Campari, Sangue de Boi e Smirnoff Ice - Campo de concentração no Acre, pra aprender a beber direito. Não tem conversa. (Nem piadinha entre parênteses).

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