quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Memória

mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão
(Drummond)

Desde pequena, aceitar as coisas como são sempre me soou uma alternativa insuportável. A vida era boa, eu era feliz. Não tive uma infância sofrida, e a vida era confortável. Tinha muitos amigos e espaço para brincar. Viajava com certa frequência. Tinha - e ainda guardo - fotos alegres que marcavam momentos bonitos das coisas da infância. Gostava de revisitar de vez em quando o passado. Anotava muito as coisas que me passavam pela cabeça, pois tinha medo de um dia esquecer o que pensei e o que vivi. Perder a memória, perder parte da minha história soava algo terrível, mesmo quando o tempo presente era doído. Registrava a dor, pra não esquecer que ela passou por aqui.

Apesar da vida boa, sempre existiu uma parte de mim que misturava o tédio com certa angústia. O tédio da vida como ela é - bonita, com amor e carinho de pais, amigos e familiares, mas ainda assim com um vazio que não se preenchia.

E vinham as tragédias. Enchentes, incêndios ou qualquer espetáculo da vida real, até mesmo os cotidianos - como a criança dormindo no chão. Essas coisas me afetavam muito e ao mesmo tempo me irritavam - o que me ofereciam era esse sentimento cristão, de compaixão, dó ou coisa assim sempre me soou clichê e deprimente. Eu não conhecia a explicação de uma sociedade dividida em classes, que justificava e legitimava essa desigualdade toda que vivíamos. O que me era conhecido era a moral, muito carregada pela questão religiosa, de que a vida era injusta.

Houve um tempo em que meu quarto era mais interessante que o mundo que me aguardava do lado de fora da janela. Qualquer um que ler isso dirá que é fase de qualquer adolescente. Talvez seja. Na época mesmo eu já me sentia como qualquer adolescente de classe média, e aquilo era sofrido. Sentia que me diferenciava por carregar em mim algo que não via no discurso dos demais adolescentes deprimidos. Eu tinha uma certeza esquisita de que tudo mudaria quando eu conhecesse outras coisas. E eu via certos filmes e imaginava que havia algo precioso da vida que ainda não havia encontrado. Enquanto não chegava, esperava deitada na cama do quarto.

Escrevia em um caderninho azul as angústias de estar viva, o mundo que não me compreendia e eu que não compreendia o mundo. Eu e Renato Russo - ele sim, sabia do que eu sentia. E então ouvia o dia inteiro, cantando coisas tipo "vamos celebrar a estupidez humana...". Chorava, ao final, quando dizia: "venha, quando a esperança está dispersa só a verdade me liberta, chega de maldade e ilusão...". Chorava, e esperava mais.

De vez em quando, lia poesia. Eu queria muito entender a poesia, mas para mim era difícil. Me esforçava. Havia uma dedicação especial para Drummond e Vinicius de Moraes. Achava bacana.

Amor nunca foi mistério para mim. Não que fosse fácil - eu chorava, sofria, e pensava que nunca mais amaria novamente. Aí começava o ano e um mocinho bonito novo passava a estudar na minha escola, e então eu dizia que nunca amei tanto alguém - ou desmerecia todos os outros dizendo que aquele sim era o primeiro amor.

Enfim, o meu lance era mesmo com o mundo: porquê as coisas eram assim? Como se explica isso? A segunda guerra mundial sempre me despertou muita curiosidade. Era um lance dificil de compreender. Um cara estranho que queria matar alguém pela religião, pela cor de pele... várias pessoas que o legitimaram, várias tantas massacradas. Eu na verdade não conseguia encontrar quem que era o herói daquela história. Quem é que ia resolver aquele imbróglio? Outro país? Aquilo não fazia sentido. Onde já se viu país "do bem" e país "do mal"?

E tinha a ditadura. A ditadura sim tinha heróis: a juventude! Ah, a juventude! Os filmes, as músicas - desde criança, a casa era tomada por Chico Buarque e outros clássicos, e meus pais sempre contando um pouco da historia. Aquilo era a política pra mim, na época. Não tinha classe trabalhadora. Pelo menos não de forma clara.

De qualquer forma, qualquer coisa que significava alguma forma de "nadar contra a maré" sempre me fascinou. Toda vez que alguém chegava entusiasmado dizendo "você viu?" ou mesmo quando ouvia na sala a música do plantão da globo, esperava que dali viria algo revelador para mim que poderia, enfim, preencher aquele vazio. Algo que daria sentido a minha vida. Ou algo que simplesmente me faria sair da rotina.

Eu olhava as frases pichadas nos muros da rua. Achava legal. Eu queria um dia ter algo a dizer no muro também, mas a minha vida era muito boa. E eu não queria falar da dor que sentia em ver gente morando na rua. Aquilo me atribuiria uma bondade cristã que não era real, não era aquilo que eu tinha. Eu via as pessoas reivindicando liberdade de expressão, mas tudo que eu falava meus pais ouviam. Na escola também. E eu também não tinha clareza do que eu poderia dizer que não seria permitido. Naquela época eu não falava em socialismo, eu sequer sabia que existia um projeto de sociedade diferente daquilo que tínhamos. Para mim, as opções eram se conformar e ser feliz com as coisas como são ou ser uma pessoa triste e incompreendida. Na escola, aprendi que o capitalismo era até onde havíamos chegado. Era assim, e ponto final.

Tinha também aquele adesivo, vermelho e branco, algumas vezes até em preto, que me recordo bastante vez em quando escrita nos bancos, que ficavam fechados no horário que eram para estar abertos: GREVE. Assim, grandão. Aquilo me arrepiava, e eu não sabia porquê. Achava legal.

As imagens que via na TV, das pessoas nas ruas por algum motivo. A causa não me interessava muito, e eu nem perguntava o porquê. Só ficava fascinada, daquele tantão de gente fazendo algo diferente do que estava previsto para o cotidiano de qualquer pessoa comum: estudar e trabalhar.

Havia dias que ficava deitada por horas na cama, esperando algo acontecer. Sabia que alguma hora chegaria algo, embora não sabia o que. Minha mãe, preocupada com a minha tristeza, buscava formas de me alegrar. Achava que eu não seria feliz. Eu de fato não era, mas eu sabia que seria um dia, só não sabia como dizer isso pra ela de forma que ela acreditasse. Esperava - e muito -, com certa certeza, que a Universidade fosse me apontar alguma "luz". A "luz" que buscava na Universidade não era o conhecimento. Quanto a isso, faria algum curso qualquer. Optei por psicologia - envolvia "ser humano" e era algo que ninguém sabia muito explicar exatamente do que se tratava -, sabia que era algo que poderia ser feito em qualquer lugar, de qualquer forma, com respaldo de alguma teoria.

Eu queria um sentido pra minha vida - até então cheia de amor (ou do que entendia por amor e conforto), mas vazia de. (nunca soube dizer do que).

Um comentário:

cé disse...

minha infância sempre foi tão menos engajada, mesmo que eu não soubesse também, pelo que lutar.. :~

 
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